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18 de nov. de 2024

Do cigarro ao snus: a história do tabaco no futebol britânico

Um produto que virou uma febre - e um vício - entre os jogadores da Premier League se tornou debate nos últimos anos, mas a relação entre o futebol britânico e o tabaco possui mais de um século.

por

Vitor Daniel

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Em maio de 2024, uma pesquisa da Universidade de Loughborough - em parceria com a Associação de Jogadores Profissionais da Inglaterra (PFA) - revelou que 1 a cada 5 jogadores do país faz o uso do snus. O snus é um produto de tabaco em pó, sem fumaça, que contém nicotina e é consumido colocando os “sachês” entre o lábio e a gengiva. Ele surgiu na Escandinávia e se tornou uma febre nas últimas duas décadas graças às medidas tomadas pelo governo da Suécia que, desde 2005, faz um esforço para se tornar o primeiro país do mundo “livre de fumo”, com diversas estratégias para combater o cigarro. Como alternativa ao cigarro, o snus - e a sua versão sem tabaco, conhecida como “bolsa de nicotina” - se tornou um produto vendido em massa e, consequentemente, cresceu em popularidade no mundo do futebol.


O snus começou a chamar mais atenção dos torcedores quando o Jamie Vardy foi fotografado com uma embalagem durante uma atividade com a seleção inglesa e, em 2016, ele afirmou em sua autobiografia que “as pessoas ficariam surpresas com o quanto o uso é comum dentro do futebol”. Outros jogadores da Premier League já foram flagrados consumindo o snus até no banco de reservas e rapidamente esse hábito se tornou um tópico de discussão dentro da liga. Com décadas de campanha antitabagismo na Inglaterra, a associação entre atletas de alto nível e o cigarro se tornaram inviáveis, tanto por questões de saúde, quanto de influência e imagem. Assim, o snus se tornou uma alternativa “discreta” para os jogadores, que, em sua maioria, associam o tabaco e a nicotina ao relaxamento e à diminuição dos sintomas de estresse e ansiedade causados pela pressão e exposição da liga mais famosa do mundo. Em sua versão clássica, o snus tem a venda proibida no Reino Unido, mas o uso não é proibido e o produto também não viola as regras anti-doping. 



Jamie Vardy carregando o snus em um treino da seleção inglesa. (Daily Mirror)

O debate sobre o snus no futebol é relativamente novo, mas a relação do tabaco com o futebol inglês tem mais de um século e possui diversas curiosidades:


O tabaco foi introduzido na Inglaterra no séc.XVI, inicialmente associado a propriedades medicinais, e foi ganhando cada vez mais espaço nos séculos seguintes, carregando significados e sentidos sociais. Desde a Era Vitoriana seu uso foi contestado, mas a simbologia do fumo, carregada de mundanidade e até inteligência, se infiltrou na cultura britânica. Mas foi no final do séc.XX que essa relação foi transformada por uma inovação: na exibição de Paris de 1883, James T Bonsack apresentou aos britânicos a sua nova máquina de produção de cigarros, cem vezes mais eficiente do que o trabalho manual antes utilizado para enrolar o fumo. Essa mudança impulsionou a fabricação em massa e tornou o produto mais acessível para as classes trabalhadoras e, nas décadas seguintes, o cigarro ganharia ainda mais significados, diversos e contraditórios: rebeldia, sofisticação, sensualidade, vida adulta, masculinidade, feminilidade e outros. 


Ainda no final do séc.XX, as primeiras conexões com o futebol começaram a aparecer: as empresas de tabaco sabiam da importância da propaganda e das estratégias de fidelização dos clientes. Em 1896 surgiu a primeira leva de cartas colecionáveis de futebol que vinham dentro das caixas de cigarro. Essas cartas originalmente foram inventadas para a proteção dos cigarros, mas logo as empresas perceberam que poderiam transformar essas peças em colecionáveis e os jogadores de futebol eram personagens perfeitos para isso. Ao longo de mais de 40 anos, milhões dessas cartas foram comercializadas e a associação do futebol com a indústria de tabaco era gigante. O uso dos atletas também era uma estratégia para diminuir a preocupação do público com possíveis problemas de saúde, em uma tentativa de dizer que se até os jogadores podiam fumar sem ter sua condição física prejudicada, qualquer um poderia consumir os cigarros.





Cartas colecionáveis de cigarro com jogadores de futebol, das empresas “Churchman” e “John Player and Sons”. (Spartacus Educational)

Alguns jogadores famosos se tornaram o rosto de marcas de cigarro britânicas. O Dixie Dean, por exemplo, foi o garoto-propaganda do Wix, elogiando o sabor e recomendando o produto aos jovens. Stanley Matthews, que nunca foi fumante, também virou a cara do Craven A em 1954, em propagandas que diziam que “o controle de bola suave do Matthews se conectava com a suavidade dos cigarros”. Já o Nat Lofthouse, lenda do Bolton Wanderers, eleito o melhor jogador do futebol inglês em 1953, afirmou que “não existia nada melhor do que deitar na banheira e apreciar um bom cigarro depois de um jogo”. Mas também foi na década de 50 que as coisas começaram a mudar.




Jogadores Dixie Dean e Stanley Matthews como garotos-propaganda das cigarros “Wix” e “Craven A”.
(The Times / Vintage Stuff)


Nat Lofthouse fumando um cigarro no vestiário depois de marcar os dois gols que deram o título da FA Cup de 1958 ao Bolton Wanderers na final contra o Manchester United. (PA Images)

Alguns anos antes, durante a Segunda Guerra Mundial, a escassez de papel colapsou a produção das cartas colecionáveis de futebol e, a partir dos anos 50, as políticas de combate ao cigarro ganharam outra dimensão graças aos primeiros estudos que vincularam o tabagismo ao câncer de pulmão. Em 1962, o Royal College of Physicians publicou o seu famoso relatório Smoking and Health, que se espalhou pelo Reino Unido e afetou a venda de cigarros, além de lançar as bases para futuras ações governamentais, como taxações, proibições de anúncios e propagandas, leis contra o fumo em espaços públicos e outras.


Na década de 80, as empresas diversificaram as estratégias para manter o público interessado, inclusive investindo na aparição de marcas de cigarro em filmes, mas também foi uma época de fortalecimento de ações combativas para mudar a opinião pública. Foi nessa época que o Conselho de Educação em Saúde da Inglaterra lançou uma campanha em parceria com a DC Comics, na qual o Superman lutava contra o vilão “Nick O’Teen”, que tentava recrutar crianças para o seu exército de fumantes. Em 1984, o No Smoking Day (Dia Antifumo) foi criado na Inglaterra, um evento organizado por médicos e organizações antitabagismo para incentivar os fumantes a largarem o vício. No mesmo ano, o West Bromwich Albion lançou a sua camisa de jogo antitabagismo, que virou uma peça cult de colecionadores muitos anos depois. A ação do West Bromwich Albion é esclarecida pelo contexto da década, mas ainda foi considerada à frente do seu tempo, já que os cigarros eram amados nas arquibancadas e só foram proibidos mais de 20 anos depois. Curiosamente, uma das fotos mais icônicas do futebol inglês nesse tema é do próprio West Bromwich, mas em 1972, quando o goleiro John Osborne fumou um cigarro durante um jogo.



Superman x Nick O’Teen, quadrinho da campanha do governo britânico em parceria com a DC Comics.
(DC Comics)

Alistair Robertson em campo com a camisa antitabagismo do West Bromwich Albion em 1985 e o goleiro John Osborne fumando um cigarro durante uma partida em 1972. (Reprodução)

É bom lembrar que as décadas de 70 e 80 foram muito complicadas para o futebol inglês: a maior parte do dinheiro dos clubes vinha da presença das torcidas nos estádios, mas isso se tornou um problema pela falta de estrutura e de segurança pros torcedores. O futebol refletia o contexto da época, no qual as tensões políticas, a recessão econômica e o desemprego traziam uma sensação de desesperança na sociedade. Ao mesmo tempo, a violência urbana crescia e, junto com ela, o hooliganismo e o racismo aumentavam no futebol nacional. As condições precárias de segurança e de organização culminaram em duas tragédias envolvendo torcidas inglesas: os desastres de Bradford e de Heysel, em 1985. Em Bradford, um incêndio na arquibancada deixou 56 torcedores mortos e 265 feridos, e as investigações revelaram que o fogo começou acidentalmente por causa de um cigarro, aumentando a pressão para o banimento do fumo em arquibancadas de madeira.



A tragédia de Bradford em 1985. (Rex)

Jogadores de futebol, vistos como figuras públicas que inspiram e influenciam a juventude inglesa, tiveram que se afastar cada vez mais do tabagismo, além de que, com a modernização do futebol e um foco crescente na preparação física, fumar dentro do esporte de alto nível se consolidou como um tabu.


Nos anos 2000 as ações aumentaram, com novas regras da FIFA e da UEFA em relação às propagandas e à proibição definitiva dos cigarros dentro dos estádios, algo que aconteceu na Inglaterra entre 2005 e 2007. Um pouco antes, em 2002, o Beckham e a Premier League ameaçaram processar a British American Tobacco (BAT) - maior empresa de tabaco do mundo - por usar indevidamente a imagem de jogadores da liga, como o próprio Beckham, o Henry e o Michael Owen, para promover os cigarros Dunhill em anúncios no futebol da Malásia.


Apesar de tudo, o ato de fumar ainda é muito forte dentro da cultura futebolística, mesmo que não esteja dentro dos estádios ingleses. Do outro lado, o fenômeno do snus mostra que o consumo de tabaco entre atletas também continua presente e está ligado diretamente a outras questões do nosso tempo.



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