
Além de ser o melhor jogador da história, Pelé foi o rosto de um futebol - e de um mundo - em transformação. O desenvolvimento do futebol verdadeiramente globalizado tinha ele como o seu embaixador, uma figura que cativava todos os povos, além de ter uma importância política muito grande para a projeção internacional do Brasil, a ponto de, em 1961, o presidente Jânio Quadros propor transformar o Rei em tesouro nacional para impedir a possível saída dele para clubes europeus.
Nesse processo, o Santos era o melhor e mais requisitado clube do planeta para as turnês internacionais que eram muito bem vistas na época. Para os brasileiros, além do prestígio internacional, as turnês davam muito mais dinheiro do que a Libertadores, por exemplo, competição que o Santos desistiu de participar mais de uma vez para priorizar suas excursões.

Excursão internacional do Santos, em 1959 (Foto: Associação dos Pesquisadores e Historiadores do Santos F.C.)
As aventuras da “Pérola Negra” no mundo árabe
Se hoje o futebol árabe tem mais destaque internacional por conta dos investimentos bilionários dos países do Golfo, o mundo presta menos atenção na história rica e na grande paixão dos árabes em relação ao futebol, algo que Pelé viveu de perto.
É importante destacar que a popularização das turnês, no final dos anos 50 e durante os anos 60, ocorria junto com os processos de descolonização dos países dos continentes africano e asiático que, dentro da recém independência, convidaram o Santos a Seleção Brasileira para amistosos.
A Argélia, por exemplo, conquistou sua independência em 1962, mesmo ano da conquista do bicampeonato mundial do Brasil, em uma luta que teve o futebol como uma das suas grandes ferramentas. Três anos depois, enquanto o diretor Gillo Pontecorvo produzia o filme “A Batalha de Argel” - uma das principais referências do cinema político -, o primeiro presidente da Argélia independente, Ahmed Ben Bella, convidou a Seleção para dois amistosos.

Bastidores do filme “A Batalha de Argel” (Reprodução)
Ben Bella, que tinha sua própria história como jogador de futebol, fez questão de viajar até a cidade de Oran para ver Pelé de perto, sem saber que aquela seria sua última aparição como presidente do país. A situação política do país era de muita tensão, e algumas atitudes do Ben Bella diminuíram a sua popularidade e reforçaram movimentos de oposição. Com a sua ausência da capital Argel por causa do jogo, o seu Ministro da Defesa, Houari Boumediene arquitetou o Golpe de Estado que foi executado dois dias depois, acabando com o mandato e decretando a prisão do ex-presidente. Assim, a foto com Pelé é o último registro público antes desse momento de virada na história argelina.

Encontro entre Pelé, Ahmed Ben Bella e Garrincha, dias antes do Golpe (Foto: Al Shorouk)
No Egito, as duas visitas como jogador também mostraram o contraste de diferentes contextos políticos. Na primeira, a Seleção realizou três amistosos, com direito a uma recepção oficial do presidente Gamal Abdel Nasser, o mais icônico e polêmico líder político do mundo árabe no século XX, que foi um dos líderes da Revolução de 52 - que deu origem à República do Egito -, foi responsável pela nacionalização do Canal de Suez e o principal idealizador do pan-arabismo.
الاسطوره البرازيليه بيليه يقابل الزعيم جمال عبد الناصر في القصر الجمهوري مع الفريق البرازيلي 1960
Quando Pelé encantou os egípcios pela primeira vez, o país era oficialmente a República Árabe Unida, uma união entre o Egito e a Síria estabelecida pelo Nasser em 1958 e que durou até 1961. Curiosamente, o Egito continuou usando essa denominação até 1971 e, em 1972, já sob o comando de Anwar Al Sadat, dois anos depois da morte do Nasser, Pelé voltaria ao país, agora com o Santos.

Pelé jogando uma partida no Egito, em 1972 (Reprodução)
Em suas viagens, Pelé gostava de elogiar os craques locais
No Marrocos, em 1976, ele disputou uma partida contra um combinado de jogadores dos dois maiores clubes marroquinos, o Wydad Casablanca e o Raja Casablanca. Foi nessa oportunidade que Pelé conheceu o maior nome do futebol do país, Larbi Ben Barek, campeão espanhol com o Atlético de Madrid em 1950 e 1951. Quando encontrou o Rei, Ben Barek já estava aposentado, mas esse contato deu os holofotes merecidos para um grande craque da história do futebol que não é lembrado como deveria. À imprensa local, Pelé rasgou elogios ao jogador e afirmou que ele era uma das suas referências com a famosa frase: “Se eu sou o rei do futebol, Ben Barek é o Deus”.

Ben Barek e Pelé em Casablanca (Reprodução)
Já em 1975, já no New York Cosmos, Pelé chegou ao Líbano e, entre os compromissos do clube, jogou um amistoso vestindo a camisa do Nejmeh SC, de Beirute, contra um time de jogadores de universidades francesas do país. Depois do jogo, Pelé elogiou a performance de um dos seus companheiros de equipe, o palestino Jamal Khatib.
Com o avanço da ocupação militar de Israel depois das Guerras de 1967 e 1973, o futebol palestino buscava formas de se organizar na diáspora e o Líbano, onde estava sediada a Organização para a Libertação da Palestina, era um dos lugares onde os palestinos mais conseguiam acessar o esporte, jogando por clubes locais. Por isso, nesse período, a maior parte dos jogadores da seleção palestina jogavam no Líbano, incluindo o Khatib.
Assim como na experiência Argelina, a visita do Pelé antecipou um momento histórico: uma semana depois do jogo, a Guerra Civil Libanesa teve início, durando até 1990.

Jamal Khatib - de bigode - e Pelé com a camisa do Nejmeh SC (Foto: Acervo Pesoal Jamal Khatib)
A primeira visita ao Golfo e a consolidação de um heroi
A década de 70 marcou a primeira aparição do Rei no Golfo, começando pela Arábia Saudita e passando pelo Bahrein, Kuwait e Catar. Por onde passou, ele foi homenageado pelos governos locais e acompanhado, nas ruas e nos estádios, por milhares de torcedores apaixonados. Sempre referenciado como a “Pérola” ou a “Joia Negra”, Pelé transformou a dimensão de ídolo e se tornou uma entidade no mundo árabe. Quando ele morreu, em 2022, a imprensa árabe dedicou uma semana de homenagens e memórias dessas visitas que, talvez mais do que em outros lugares, marcaram para sempre a história futebolística e política desses países.
